segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Estas cartas tão perto do coração...

No começo achei a idéia assim meio esquisita... Parecia indiscreto. Cartas sempre me pareceram uma coisa tão íntima, daquelas que a gente guarda dentro de uma caixa no fundo do armário ou numa prateleira bem alta. Demorei a aceitar, mas afinal, fui me acostumando aos poucos. Abri o livro com o cuidado de quem segura uma taça de cristal bem frágil e a cautela de uma criança que corre na cozinha para pegar mais um pedaço de doce. Comecei a ler as primeiras linhas bem devagar e, que surpresa ao descobrir que eram realmente cartas! Só então que comecei a acreditar... E foi começar a ler que não conseguia mais parar, e fui sentindo uma pontinha de inveja, uma vontade de também receber cartas assim. Já não sabia escolher se queria ser Clarice ou ser Fernando. E, já convencida de que ninguém deveria ser privado de tal leitura, deixei que as palavras me guiassem e até me permiti imaginar que elas também eram pra mim, assim compartilhava melhor a emoção: eu ria, sorria, chorava, sentia. Tudo que eles também um dia sentiram. Fui conhecendo os segredos, as aflições, até que... Pipocas, Fernando! Duas palavras que fizeram com que de um sorriso nascesse uma fina lágrima. Havia descoberto um segredo! Fechei o livro no mesmo instante, uma espécie de egoísmo me invadiu e eu não queria dividir aquela preciosa informação com ninguém mais. Quis acreditar que era somente eu que sabia. Fiquei imaginando aquele episódio: Fernando dirigindo. Clarice olhando o mar de Copacabana. Aquelas praias tão lindas e cheias de luz, com o encanto que nenhuma outra possui. Fernando falando de Olavo. Clarice resmungando esfinges. Fernando falando que Clarice parece árvore. “Pipocas, Fernando!” E foi aí que me foi revelado o segredo: Clarice comia pipocas. E comia apaixonadamente. Porque cada simples gesto de Clarice não pode ser simples o suficiente só por causa desse nome: Clarice. E eu que sempre achei pipoca uma coisa muito engraçada, tão pequena e faz um barulhinho tão gostoso quando a gente joga na panela. Uma vez me contaram de uma garota que gostava era de colocar a mão dentro do saco de pipoca e sentir os grãozinhos escorrendo pelos dedos. Mas eu gosto é desse barulhinho de grãozinhos ali dentro da panela pipocando! E daquele cheirinho gostoso que vai tomando conta da casa toda. Eu comecei a achar que era esse o cheiro que devia ter a casa de Clarice, e que ela escondia saquinhos de pipoca na bolsa. Mas que nome engraçado esse: pipoca. Mas tudo bem, porque Clarice era engraçada (Fernando me contou isso também). Contou que ela sabia rir e chorar ao mesmo tempo e era parecida com árvore. Agora eu sei, Clarice, o que você pensa quando olha assim com esse olhar fixo e misterioso, que não é de Garbo nem de Davis. Esse olhar só seu. Ninguém mais tem. Agora eu descobri, Fernando: eram pipocas! E agora, toda vez que vejo passar um pipoqueiro eu me sinto no direito de gritar: “Pipocas, Fernando!”. Não, não tenho a intenção de roubar essa frase que é só sua, assim como seu olhar. É só um desejo inocente de fazer parte. Porque assim eu me sinto um pouco Clarice e perco o medo de ler estas linhas tão secretas. E agora que todos os dias recebo cartas, todos os dias escrevo cartas.


* Sobre o livro “Cartas perto do coração” de Clarice Lispector e Fernando Sabino.