quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Recordações da casa verde e branca

Vivo em Cachoeiro de Itapemirim. A famigerada terra de Roberto Carlos, Jece Valadão, Carlos Imperial, Sérgio Sampaio, Rubem Braga, e muitos outros. Uma cidade pequena, cheia de grandes nomes e histórias a serem contadas. Mas nunca precisei ir muito longe para conhecer grandes estórias vindas dos lugares mais fantásticos do mundo.
E o meu passaporte sempre esteve no mesmo local. Desde criança eu ouvia falar desta casa, mas nesta época ainda era guiada pela mão de minha mãe. Hoje já aprendi o caminho e, em alguns anos, espero também segurar pelas pequenas mãozinhas alguém com a mesma ansiedade que eu mesma caminhava.
E o misterioso lugar sempre esteve ali na Rua 25 de março, bem na casa em que viveu Rubem Braga, onde, merecidamente, hoje é a Biblioteca Municipal – e o que mais poderia ser a casa de Rubem? Para onde eu sempre caminhei com ansiedade em busca de um algo que ainda não sabia o que era, e que ainda hoje não sei. Sei apenas que caminhar por aquela rua me enche de lembranças da infância, de ansiedade por já no caminho ainda não saber o que quero ler, a fome de querer ler todos os livros de uma vez, a angústia de nem sempre conseguir terminar todos, mas também a felicidade de caminhar segurando o meu passaporte para o mundo.
Pois olhar para a velha casa pintada de verde e branco me faz lembrar o que desde a infância eu ouvia dizer: que não importa o que queira ser ou onde queira ir, em uma das prateleiras sempre há um livro que pode proporcionar um incontável número de sensações. E, muitas vezes, com mais do que suas próprias estórias para contar, com as histórias dos lugares por onde passaram e das mãos que os seguraram antes das minhas.
E foi assim que com Julio Verne dei a volta ao mundo em menos de 80 dias; talvez somente três, mas com a mesma (ou mais) emoção que Phileas Fogg. Marcel Proust me levou de Combray à Balbec a percorrer os caminhos de Swann, entre seus amores e lembranças. Com Jack Kerouac me aventurei pela costa dos Estados Unidos e com Clarice Lispector mergulhei em profundas conversas comigo mesma me perguntando coisas sobre a paixão, o medo, a solidão ou o amor – coisas que quase nunca têm respostas. Lewis Carroll me levou a um mundo onde gatos, coelhos e cartas de baralho têm vozes para me apresentar à sua pequena Alice.
E é assim que, desde a minha infância, a Rua onde fica a Casa dos Braga me enche de recordações. E, ultimamente têm passado muitos anos - como disse o velho Braga – mas, não importa quantos anos passem, nada vai mudar a sensação de caminhar por esta rua em busca dos outros mundos em que vivo dentro desse cantinho chamado Cachoeiro de Itapemirim.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Como sempre fazia, ela estava sentada naquele que era seu lugar preferido, debaixo do abacateiro. Não era tempo de abacate, ela comia morangos e segurava o inseparável livro – a sua proteção contra tudo. Às vezes lia um trecho; depois parava (gostava de deixar as palavrinhas flutuando na mente um pouco antes de ler mais um trecho e deixar as novas palavrinhas se misturando às outras). Essa era uma das sensações preferidas para ela. Até que, sem que ela esperasse, ele chegou. Se aproximava lentamente, fingindo que nada queria (mas não se esforçava muito em disfarçar). O olhar fixo imediatamente a atingiu (estava tão distraída). Invadiu sua alma, descobriu seus desejos mais secretos, conheceu seus sonhos e se descobriu em cada canto de sua mente (a partir daquele momento já dominava cada pedaço do seu pensamento). Ela tentou resistir, desviar o olhar (era um absurdo que aquele estranho aparecesse assim no seu lugar preferido, sem ao menos pedir permissão e se atrevesse a desnudar todos os seus sentimentos e revirar seus segredos mais íntimos). Ele a segurava pela mão, fazia-a sorrir sem perceber, não conseguir desviar seu olhar ao dele, alterava as batidas do seu coração e até mesmo movia o chão sob seus pés. Como se não bastasse, ainda queria levá-la com ele para seu mundo. Ela tentou se agarrar aos seus livros, ao abacateiro, à sua bolsa mas, suas pernas tremiam e ela perdia sua força a qualquer simples contato entre seus corpos. Ela relutou, protestou, tentou se segurar naquele fiozinho de segurança que a manteve protegida por tanto tempo, mas nada adiantava (bem que lhe disseram que quando ele chegasse seria impossível lutar). Este fiozinho era frágil e por mais forte que ela segurasse não poderia impedi-lo de se partir. O impacto deixou marcas (ela já sabia desde o início que essas marcas não se apagam nunca). Ele se ofereceu para acompanhá-la. Ela sabia dos riscos, mas decidiu aceitar e o avisou que não sabia direito para onde ir. Ele não se importou, disse que estava tudo bem, eles encontrariam um caminho. Ao fim da estrada, não havia nada além de um abismo. Ele a olhou nos olhos. O mesmo olhar desde aquele primeiro encontro. Penetrante, fixo, intenso. Ela ainda sentia o mesmo e o perguntou: “Você confia em mim?”. Um gesto com a cabeça disse que “sim”. Juntos eles flutuaram. Quando olharam pra trás, estava a vida. Mas eles estavam além.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Um jour a Paris

Le Moulin de La Galette
Pierre-Auguste Renoir
(Baile no “Moulin de La Galette”), 1876
Óleo sobre tela,
131 x 175 cm
Paris, Musée d´Orsay

Nunca achei que fosse possível. E quem acharia? Mas hoje me perdi de um modo que nunca pensei que poderia. Foi em Paris... não na Champs Elysées, no Jardin de Tuileries ou alguma rua de Montmartre. Me perdi num baile no Moulin de La Galette, um baile de música tão alegre que logo me encheu de imensa alegria como sempre imaginei que seria Paris: como uma festa. Como seus habitantes - que eu conhecia de livros, filmes e quadros - a descreviam. Como Renoir pintava seus quadros e achava que a arte deveria ser (ou a vida).
E eu estava na França ainda, mas no ano de 1876, tempo em que as mulheres ainda usavam longos vestidos rodados e coloridos. Arrastando-me pela noite e abrindo espaço entre as pessoas, fui seguindo as luzes brilhantes e os tecidos esvoaçantes das saias das belas mulheres de faces rosadas. Conforme caminhava, não sabia bem para onde ir e, logo eu, que sempre me preocupava em planejar, ter um objetivo, horários, estava perdido em outro país, outro século, talvez até em outra vida...
Mas nada me impressionava (com o perdão do trocadilho) tanto quanto aquelas figuras meio borradas que pareciam se dissolver conforme eu me aproximava delas. Tantas histórias em seus olhares: uma jovem dançava com um bem vestido senhor que a segurava firme, mas não conseguia impedir que seu olhar mirasse algo que não estava ali e, por mais que eu também tentasse descobrir, só ela mesma poderia saber o que merecia tanta atenção daquele distante par de olhos. As vozes das pessoas se misturavam à canção da qual pouco eu pouco entendia entre os “cherrie”, “amoureux”, “lendemain” e “toujours”. As moças me encantavam, as luzes e cores me cegavam até que, quando eu percebi, eu estava ao lado de uma mesa onde um homem, alheio à música e a alegria das pessoas dançando, preocupava-se com Montaigne e ainda assim merecia a atenção de duas moças que de filosofia pouco sabiam, mas de gestos e olhares entendiam bem.
Tudo era muito agradável, mas eu precisava sair dali e não sabia como. Ao longe, avistei a porta e, enquanto caminhava em sua direção, fui abordado por uma bela moça de longos cabelos ruivos que me dizia em seu belo sotaque “Bon soir, monsieur!”. Depois de um pouco gaguejar, disse meio baixinho “Très bien, merci!” mas, depois de observá-la por alguns segundos, percebi que ela também se dissolvia, então retomei a decisão de deixar o lugar. Enquanto me esgueirava pela porta, ainda ouvi-a dizer “À toute à l´heure” e depois de me sentir meio arremessado, notei que eu estava em pé e meus olhos se abriam devagar (até então não havia percebido que eles estavam fechados). Ao abri-los, percebi que eu estava num grande salão entre quatro paredes brancas com pouca luz, exceto em alguns pontos em que haviam paisagens e pessoas materializadas em muitas cores sob a forma de quadros. Então percebi que o tempo todo havia estado onde começava a me recordar de ter entrado pela manhã: o Musée d´Orsay, bem diante do quadro de Renoir “Le Moulin de La Galette”.
Ainda sem compreender bem, fui me recordando que me contaram de um dia em que faltou preto. Não se sabe se fazia sol ou chuva. Mas faltava o preto. Mas, se o preto era a ausência de cor, que falta poderia fazer? Mas foi preciso que faltasse o que já não fazia falta, sem que se soubesse, para se perceber que da ausência do que já é ausência (de cor) surgiria o impressionismo. E não poderia haver outro nome para definir. Ao mergulhar nessas cores, não há como não se perder.
Entre cores, luzes e sombras, entre azuis, vermelhos e amarelos fui arrebatado e levado para dentro de uma tela que, depois das rápidas pinceladas de Renoir, nunca mais foi somente uma tela. Não preciso de mais nada: calendários, relógios, planos ou idéias. Me perder já basta. Destes quadros pintados entre a dor (de suas mãos) e a alegria (de suas cores) nada mais peço além da permissão de observá-los por uns instantes e a licença para me perder.
Sim, Paris sempre será uma festa. Enquanto existirem museus, quadros de Renoir e a paixão com que sempre pintou seus quadros me transportando aos lugares em que ele próprio esteve.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Estas cartas tão perto do coração...

No começo achei a idéia assim meio esquisita... Parecia indiscreto. Cartas sempre me pareceram uma coisa tão íntima, daquelas que a gente guarda dentro de uma caixa no fundo do armário ou numa prateleira bem alta. Demorei a aceitar, mas afinal, fui me acostumando aos poucos. Abri o livro com o cuidado de quem segura uma taça de cristal bem frágil e a cautela de uma criança que corre na cozinha para pegar mais um pedaço de doce. Comecei a ler as primeiras linhas bem devagar e, que surpresa ao descobrir que eram realmente cartas! Só então que comecei a acreditar... E foi começar a ler que não conseguia mais parar, e fui sentindo uma pontinha de inveja, uma vontade de também receber cartas assim. Já não sabia escolher se queria ser Clarice ou ser Fernando. E, já convencida de que ninguém deveria ser privado de tal leitura, deixei que as palavras me guiassem e até me permiti imaginar que elas também eram pra mim, assim compartilhava melhor a emoção: eu ria, sorria, chorava, sentia. Tudo que eles também um dia sentiram. Fui conhecendo os segredos, as aflições, até que... Pipocas, Fernando! Duas palavras que fizeram com que de um sorriso nascesse uma fina lágrima. Havia descoberto um segredo! Fechei o livro no mesmo instante, uma espécie de egoísmo me invadiu e eu não queria dividir aquela preciosa informação com ninguém mais. Quis acreditar que era somente eu que sabia. Fiquei imaginando aquele episódio: Fernando dirigindo. Clarice olhando o mar de Copacabana. Aquelas praias tão lindas e cheias de luz, com o encanto que nenhuma outra possui. Fernando falando de Olavo. Clarice resmungando esfinges. Fernando falando que Clarice parece árvore. “Pipocas, Fernando!” E foi aí que me foi revelado o segredo: Clarice comia pipocas. E comia apaixonadamente. Porque cada simples gesto de Clarice não pode ser simples o suficiente só por causa desse nome: Clarice. E eu que sempre achei pipoca uma coisa muito engraçada, tão pequena e faz um barulhinho tão gostoso quando a gente joga na panela. Uma vez me contaram de uma garota que gostava era de colocar a mão dentro do saco de pipoca e sentir os grãozinhos escorrendo pelos dedos. Mas eu gosto é desse barulhinho de grãozinhos ali dentro da panela pipocando! E daquele cheirinho gostoso que vai tomando conta da casa toda. Eu comecei a achar que era esse o cheiro que devia ter a casa de Clarice, e que ela escondia saquinhos de pipoca na bolsa. Mas que nome engraçado esse: pipoca. Mas tudo bem, porque Clarice era engraçada (Fernando me contou isso também). Contou que ela sabia rir e chorar ao mesmo tempo e era parecida com árvore. Agora eu sei, Clarice, o que você pensa quando olha assim com esse olhar fixo e misterioso, que não é de Garbo nem de Davis. Esse olhar só seu. Ninguém mais tem. Agora eu descobri, Fernando: eram pipocas! E agora, toda vez que vejo passar um pipoqueiro eu me sinto no direito de gritar: “Pipocas, Fernando!”. Não, não tenho a intenção de roubar essa frase que é só sua, assim como seu olhar. É só um desejo inocente de fazer parte. Porque assim eu me sinto um pouco Clarice e perco o medo de ler estas linhas tão secretas. E agora que todos os dias recebo cartas, todos os dias escrevo cartas.


* Sobre o livro “Cartas perto do coração” de Clarice Lispector e Fernando Sabino.