segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Como sempre fazia, ela estava sentada naquele que era seu lugar preferido, debaixo do abacateiro. Não era tempo de abacate, ela comia morangos e segurava o inseparável livro – a sua proteção contra tudo. Às vezes lia um trecho; depois parava (gostava de deixar as palavrinhas flutuando na mente um pouco antes de ler mais um trecho e deixar as novas palavrinhas se misturando às outras). Essa era uma das sensações preferidas para ela. Até que, sem que ela esperasse, ele chegou. Se aproximava lentamente, fingindo que nada queria (mas não se esforçava muito em disfarçar). O olhar fixo imediatamente a atingiu (estava tão distraída). Invadiu sua alma, descobriu seus desejos mais secretos, conheceu seus sonhos e se descobriu em cada canto de sua mente (a partir daquele momento já dominava cada pedaço do seu pensamento). Ela tentou resistir, desviar o olhar (era um absurdo que aquele estranho aparecesse assim no seu lugar preferido, sem ao menos pedir permissão e se atrevesse a desnudar todos os seus sentimentos e revirar seus segredos mais íntimos). Ele a segurava pela mão, fazia-a sorrir sem perceber, não conseguir desviar seu olhar ao dele, alterava as batidas do seu coração e até mesmo movia o chão sob seus pés. Como se não bastasse, ainda queria levá-la com ele para seu mundo. Ela tentou se agarrar aos seus livros, ao abacateiro, à sua bolsa mas, suas pernas tremiam e ela perdia sua força a qualquer simples contato entre seus corpos. Ela relutou, protestou, tentou se segurar naquele fiozinho de segurança que a manteve protegida por tanto tempo, mas nada adiantava (bem que lhe disseram que quando ele chegasse seria impossível lutar). Este fiozinho era frágil e por mais forte que ela segurasse não poderia impedi-lo de se partir. O impacto deixou marcas (ela já sabia desde o início que essas marcas não se apagam nunca). Ele se ofereceu para acompanhá-la. Ela sabia dos riscos, mas decidiu aceitar e o avisou que não sabia direito para onde ir. Ele não se importou, disse que estava tudo bem, eles encontrariam um caminho. Ao fim da estrada, não havia nada além de um abismo. Ele a olhou nos olhos. O mesmo olhar desde aquele primeiro encontro. Penetrante, fixo, intenso. Ela ainda sentia o mesmo e o perguntou: “Você confia em mim?”. Um gesto com a cabeça disse que “sim”. Juntos eles flutuaram. Quando olharam pra trás, estava a vida. Mas eles estavam além.

5 comentários:

henrique disse...

me lembra o clip do sigur rós - glósoli... tem no youtube, dá uma olhada (:
gostei daqui também, vou te colocar na listinha
beijão

Ludmila Clio disse...

Fiquei aflita até à última linha... sensacional!!

Marcelo Grillo disse...

Abyssus abyssum invocat. E como um abismo chama outro abismo, vamos nos abismando cada vez mais. O abismo nos mete medo, mas nos atrai. Texto muito sensível, guria.

Paixão, M. disse...

Lindo lindo lindo! Assim mesmo, sem reticências no final!

Sou aquilo que se vê. disse...

passando por alguns blogs, cheguei no seu. e logo, fiquei encantada com suas palavras.
parabéns :D